Ao se tratar da questão antijuridicidade, pontua-se a existência de mecanismos predispostos à defesa, ou que visam impedir/dificultar a lesão ao bem jurídico, que são os ofendículos (ou ofendículas). Para Damásio (2003), tais mecanismos obedecem a seguinte definição: “ofendículo significa obstáculo, impedimento ou tropeço. Em sentido jurídico, significa o aparato para defender o patrimônio, o domicílio ou qualquer bem jurídico de ataque ou ameaça”. Segundo alguns autores, tais mecanismos estariam relacionados à legítima defesa, enquanto para outros estaria relacionado ao exercício regular de direito. Tal dificuldade é que suscita estas conjecturas e tentativas de construção do artigo que segue.
Longe de pôr fim à polêmica, entendo, porém, que se os ofendículos têm uma relação mais estreita com uma espécie de aparato de defesa, maior são os indícios que o aproximam de um exercício regular do direito, assim como o afastam da possibilidade de um relação com a legítima defesa. Desta forma, não consigo entender a solução híbrida proposta por Bittencourt (2004), para quem os ofendículos são um exercício regular do direito em um primeiro momento e em um segundo momento se aproximam mais da legítima defesa. “Na verdade, acreditamos que a decisão de instalar os ofendículos constitui exercício regular do direito, isto é, exercício do direito de autoproteger-se. No entanto, quando reage ao ataque esperado, inegavelmente constitui legítima defesa preordenada”. Tal argumento, além de confuso, nada acrescenta ao entendimento. Pelo contrário, torna-o ainda mais difícil. Ademais, irei tentar demonstrar da impossibilidade (ou dificuldade) da relação dos ofendículos à legítima defesa, indicando para tal os requisitos de existência da legítima defesa.
Está demonstrado no art. 25 do CP: “ Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente a direito seu ou de outrem.”
De forma mais didática, sustenta Mirabete (1999), destrinchando entendimento do artigo 25, a possibilidade de quatro itens ou requisitos de existência: “reação a uma agressão atual ou iminente e injusta, defesa de um direito próprio ou alheio, a moderação o emprego dos meios necessários à repulsa e por fim o elemento subjetivo”. Como a negativa de um destes itens, já descaracteriza a legítima defesa, vamos desta forma avaliar todos os itens, na tentativa de encontrar algum deles em que não seja adequado à viabilidade de existência quando comparado aos ofendículos.
1) A reação a uma agressão atual ou iminente e injusta – poderia até ser válida a idéia de uma reação a uma agressão injusta e iminente (a invasão de um propriedade, por exemplo).Mas como justificar que os ofendículos (como cacos de vidros em um muro, por exemplo) seria uma reação a uma agressão atual? Pensar desta forma seria acreditar que a tal propriedade estaria constantemente (e ininterruptamente) sendo invadida e tal idéia é absurda.
2) Reação de direito próprio ou alheio – Para este item, entendo que os ofendículos se encaixam perfeitamente, pois se pensarmos novamente no exemplo dos cacos de vidro nos muros, chegaremos sem nenhum esforço ao entendimento, de que tais mecanismos podem ser utilizados para defender direito próprio ou alheio. Para este item, não há portanto nenhuma refutação.
3) Moderação nos meios utilizados à repulsa – Neste item repousa a dificuldade devido a subjetividade que permeia a matéria. Sobre o assunto, pontua Aníbal Bruno: “ A legítima defesa não deve vir a ser oportunidade para que o agredido exerça sobre o agressor atos de desforço ou vingança; aquilo que ela visa é simplesmente estender sobre o bem em perigo uma proteção eficaz. Ainda que o direito de defesa possa exercer-se em toda aquela amplitude, não se pode deixar de atender a uma certa exigência de proporcionalidade” Diante de tudo isso é que enxergo um grande componente subjetivo ao refutar este item. O que será “moderação nos meios” para uma invasão de propriedade? Será moderado, utilizar uma cerca elétrica para um garoto que salta o muro para furtar uma fruta do quintal? Poderia-se alegar, no entanto que o tal garoto estaria armado, ou não ter a mera intenção de furtar uma fruta do quintal, ou mesmo de não ser um garoto e sim um homem de baixa estatura. Ainda assim, a proporcionalidade entre ataque e defesa não pode deixar de ser observada. A subjetividade, porém, atua em mão dupla, pois ao tempo que atesta a certeza para a refutação, não pode-se simplesmente negar a possibilidade da ocorrência dos ofendículos à legítima defesa com base na simples possibilidade da dúvida. A prudência indica neste caso, que o ofendículo posicionaria-se como, no mínimo diante de uma dificuldade, em relação a legítima defesa.
4) o elemento subjetivo é um item que abstenho-me de comentar, pelos motivos já citados no item anterior.
Desta forma, ainda que se alegue que a legítima defesa poderia ser aplicada na maioria dos casos, haveria uma dificuldade no terceiro e quarto itens, o que já seria suficiente para afastar a possibilidade (ao menos por prudência) da relação dos ofendículos à legítima defesa. Assim sendo, vez que não apresenta dificuldades aparentes, corroboro com a idéia proposta por Mirabete (1999)“ Os ofendículos são aparelhos predispostos para a defesa da propriedade (arame farpado,cacos de vidro em muros,etc) visíveis e a que estão equiparados os “meios mecânicos” ocultos (eletrificação de fios, maçanetas, portas, etc). Trata-se, para nós de exercício regular de direito” Tal idéia, baseia-se também no fato de que este exercício regular de direito (os ofendículos) limita-se necessariamente onde começa o abuso deste direito.
Assim sendo, o proprietário que não se limita a pôr cacos de vidro no muro e os estende por toda a residência, alcançando a calçada externa no chão estará necessariamente cometendo um abuso e neste caso tais ofendículos deixam de ser um exercício regular do direito, constituindo ilicitude. Se é verdade que tal relação “ofendículos x legítima defesa” não pode ser excluída apenas pela dificuldade, é igualmente verdade que, por não existirem quaisquer dificuldades, a relação dos ofendículos ao exercício regular do direito nos parece mais prudente. Pois tal relação ainda que não possua os argumentos que solidifiquem a posição enquanto correta, é entretanto, a menos incorreta.
Fontes:
BITENCOURT, Cezar Roberto – Tratado de Direito Penal : Volume 1 – 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
JESUS, Damásio E. de, - Direito Penal: volume 1 - 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2003
MIRABETE, Júlio Fabrini - Manual de Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
BRUNO, Aníbal - Direito Penal - Parte Geral: Tomo 1- Ed. Forense, 2003
Milton Silva de Vasconcellos
Acadêmico de Direito da FABAC (Faculdade Baiana de Ciências).Código da publicação: 873
Como citar o texto:
VASCONCELOS, Milton Silva de..Ofendículos, relação correta ou apropriada?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 151. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/trabalhos-academicos/873/ofendiculos-relacao-correta-ou-apropriada. Acesso em 7 nov. 2005.
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